segunda-feira, janeiro 22, 2007

CONSUMO, LOGO EXISTO - Frei Betto

Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no
Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na
pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha,
feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O
eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes,
sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos
da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da
mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere
Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável.

É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais -
manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e
a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.

A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de
arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa
coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e,
sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um
ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé
ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.

Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos
econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um
possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens".
Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal
modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também
consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que
me cercam é quedeterminam meu valor social. Desprovido ou despojado
deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da
exclusão.

Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas,
tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra
essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígine
cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um
olhar de desdém.
Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho
guardado na adega, uma jóia?

Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na
sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife.
Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um
carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux.
A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de
um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela...

Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura
neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre
como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos,
dos ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime
aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles
tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão
causa frustração, depressão, infelicidade.

Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados,
é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também
objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela mas
não é ela: bens, cifrões, cargos etc.

Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo
são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.
Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o
vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de
vizinhança, como ainda ocorre na feira.

Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola
abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da
falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser
maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a
destrói."
E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair
da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que
deseja.

Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas
e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam
indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um
passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico:
Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também
gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por
vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta
coisa existe das quais não preciso para ser feliz".

Frei Betto é frei dominicano e escritor.

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