quinta-feira, maio 03, 2007

E se formos apenas grandes primatas?

O ser humano gosta de se pensar acima dos outros animais: o mais capaz, o mais inteligente, o mais social, desenvolvido e tecnológico. Já tentamos 1,5de tudo para justificar tamanho desejo de superioridade: um cérebro grande, um córtex relativamente grande e maior do que esperado para o corpo que temos. Até neurônios especiais descobrimos em nossa espécie.
Um estudo em nosso laboratório, no entanto1, sugere uma visão mais humilde da condição humana. Dadas as relações encontradas entre o número de neurônios e o tamanho do cérebro e do corpo de diferentes primatas, do sagüi ao macaco reso, a extrapolação para o número esperado de neurônios na espécie humana – cem bilhões, aproximadamente – mostra que nos encaixamos exatamente nos valores esperados. De acordo com as regras que regem a construção do cérebro dos primatas, um animal dessa espécie com cem bilhões de neurônios teria um encéfalo de 1,4 kg e um corpo de cerca de 70 kg. Soa familiar?
Não somos os maiores mamíferos, não temos o maior cérebro nem em tamanho absoluto nem relativo. Compare-nos com outros primatas, e não com mamíferos variados (não há por que misturar maçãs e laranjas quando conhecemos a diferença entre elas), e não somos especialmente encefalizados: temos um cérebro apenas do tamanho esperado para um primata do nosso tamanho, com o número de neurônios que deveríamos ter (gorilas e orangutangos, ao contrário, é que parecem ter o cérebro menor do que esperado). Talvez tenhamos mais neurônios do que os golfinhos, mas provavelmente temos menos do que a baleia azul. Os tais neurônios especiais que só os grandes primatas possuiriam acabam de ser encontrados em baleias. Nosso córtex pré-frontal não é desproporcionalmente maior do que o dos outros grandes primatas. Estaria a neurociência em nosso encalço com uma lição de humildade? E se formos apenas grandes primatas?
Talvez seja justamente esta nossa maior distinção: sermos primatas, e dos grandes, com um número gigantesco de neurônios concentrados em pouco espaço. Um primata de cérebro maior do que o nosso provavelmente seria ainda mais capaz do que somos. Isso, no entanto, não nos diminui. Não possuímos o maior número de neurônios do planeta, mas talvez eles sejam mais do que suficientemente numerosos para dar conta de nosso corpo e ainda sobrar para as funções executivas e sociais do córtex pré-frontal. Talvez as maiores baleias até possuam mais neurônios do que nós mas não sobrem tantos, depois de descontados os que cuidam do corpo, para se ocupar de funções cognitivas mais complexas como programar datas de pagamento, escolher a cor do sofá da sala e se auto-proclamar Ser Mais Inteligente da Terra.
Ainda assim, é preciso lembrar que ter um cérebro à altura de uma cognição assombrosa não é garantia alguma de feitos maravilhosos. A sociedade construída pelo cérebro tem por sua vez efeitos incríveis sobre ele. Educação, cultura, interações sociais e até a alimentação mudam o cérebro e podem fazer de nós operários, lavradores, escritores, concertistas ou projetistas de arranha-céus. O cérebro que hoje recebe 20 anos de instrução formal e constrói computadores ou governa milhões de pessoas não é evolutivamente diferente do cérebro dos inuit, os nativos da região ártica canadense que até serem devastados pelas doenças, religiões e hábitos modernos se contentavam em passar longos períodos de inverno em silêncio, no escuro dos iglus. O mesmo cérebro pode desfrutar de uma vida de conquistas tecnológicas e intelectuais ou de caça e coleta. Ser um primata grande ajuda – mas o que decidimos fazer com o cérebro que possuímos faz muita diferença.

Suzana Herculano-Houzel

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